segunda-feira, 29 de setembro de 2014



No terceiro módulo do Curso de Literatura de Autoria Feminina, em Brasília, fizemos a leitura de 21 contos de diversas autoras de língua espanhola. O tema dos contos era sobre o complexo universo das relações entre mães e filhas. Os comentários e interpretações sobre os contos foram surpreendentes e maravilhosos. O conto lido por Ana Liési Thurler foi “Olvidada, junto a la puerta, en junio”, de Mariela Vallejos e segue aqui o seu comentário:
“As personagens do conto vivem em um mundo de pobreza estratificada.  Pamelita Ugarte, a menina “esquecida” à porta da escola, em pleno inverno chileno, vem de um universo de miséria. Desse mundo a autora traz à tona o gesto da mãe de “esquecê-la”, em um quadro em que o “abandono” pode ser uma estratégia de sobrevivência. Ao longo da história do Brasil, o abandono - na Roda dos Expostos ou sob outras formas – foi também um modo de apostar na sobrevivência da criança. No conto há a maternidade que deixa Pamelita à porta da escola.     
Ao sair, a funcionária da portaria viu a menina e levou-a para sua casa. A família de Clarisa Guzmán não é pequena, mas a menina teve acolhimento. Pamelita lembra que a mãe se chama Flora. Ela não aparecia, nem era localizada. Clarisa conforta a menina sugerindo que a mãe poderia estar doente.  
As práticas contraditórias – de abandonar e de acolher – apontam para a maternidade comportando díades. Para a mãe biológica, no limite, a expressão de amor significou renúncia.    Terminou o ano, passou janeiro. Junho significa o inverno chileno, mas também o início de um tempo gestacional. Outro nascimento da menina se anunciava.  Em uma quinta-feira de março, Pamelita acordou febril. Cuidados caseiros nada resolveram. Então, decidiram levá-la à Policlínica Pública. Antonio foi para a fila às cinco da manhã. Às onze, pediu a um vizinho para avisar Clarisa e Sebastião que podiam levar Pamelita: chegava sua vez de ser atendida. A Dra. López examinou-a. Cansada, perguntou diretamente à Pamelita: “Quem é a mãe dessa menininha?” Fez-se silêncio, rompido pela menina, apontando firmemente para Clarisa. A maternidade foi atribuída pela filha. Subverte-se a ordem natural: a filha nomeia e reconhece a mãe. E após nove meses, ocorre um novo nascimento de Pamela.
Todos voltam para casa. Para Clarisa, a maternidade significou reconhecimento por meio da filha. Clarisa acolhe essa maternidade, assumindo os cuidados para que a saúde da menina seja recuperada.  Confortada, ela verificou tudo estar em ordem.”       









Uma das atividades que mais nos mobilizou foi a realização de um Estudo Dirigido quando tivemos, juntas, a oportunidade de rever todas as questões teóricas estudadas nestes meses. E foi um prazer ver a quantidade de conteúdos aprendidos! Decidimos postar aqui algumas destas questões e respostas. A seguir, o comentário sobre “La pagina en blanco”, de Karen Blixen, por Rosângela Vieira Rocha:
“O tema central do conto “La página en blanco”, de Karen Blixen, é a questão da autoria. A apresentação das marcas de sangue do defloramento ocorrido na noite de núpcias de cada noiva se apresenta como uma das únicas “saídas criativas” permitidas às mulheres durante séculos. Nos quadros feitos de linho, as manchas formam desenhos e configurações feitos com os corpos das princesas reais. Cada quadro tem o nome de sua proprietária, ou de sua “autora”. Literalmente, as manchas são as “marcas da autoria”.
Na narrativa de Blixen, há apenas uma tela de linho em branco, que não pertenceu a nenhuma das princesas. É a “página em branco”, que pode assumir diversos significados: representaria a impossibilidade de as mulheres virgens serem autoras de suas obras, ou seja, de suas vidas? A “autoria” seria permitida apenas às mulheres que, em algum momento, “pertenceram” a um homem? Representaria uma homenagem às freiras do convento, ou uma constatação de que elas, sem a marca do sangue provocada pela conjunção carnal com um homem, jamais seriam “autoras” de uma obra de arte? Ou, no sentido oposto, mostraria, de maneira libertária, que a vida das mulheres pode, sim, ser uma “página em branco”, a ser escrita por elas da maneira como quiserem, sugerindo, pois, a existência de um leque de possibilidades?  Enfim, como todos os bons contos, “La página en blanco” propõe uma série de questões, contém ambiguidades e deixa margem a muitas dúvidas.”
E estas foram as reflexões da Laís Rodrigues de Oliveira, a partir da elaboração das suas respostas sobre os conceitos de “chica rara” e “mujer ventanera” de Carmen Martín Gaite: 







“Minha Gata Ventanera”, por Laís Rodrigues de Oliveira:
Todo sábado de manhã traz um friozinho na barriga. Deixei de me importar em acordar antes das 10h nos finais de semana. Vale a pena despertar mais cedo, não beber (muito) na sexta e passar as manhãs de sábado “estudando”. Porque estou com elas: minhas amigas “ventaneras”. Devo a cada uma delas diversas ideias inspiradoras, lembranças alegres e descobertas surpreendentes que fazemos, juntas, no cantinho mágico adotado por nós.
Naquele sábado, estava mais ansiosa por nosso encontro do que de costume. Não nos víamos há algumas semanas, e estava louca para rever minhas novas – e queridíssimas – companheiras e saber como fora a mais recente aventura da dona daquele mundinho paralelo, que já havia se tornado nosso também.
Suas histórias foram ainda melhores que a expectativa geral, e depois de muitas gargalhadas após aquele período de saudades, despedimo-nos com vontade de mais. Como sempre, continuei pensando na nossa deliciosa manhã, e uma das histórias que nos foi relatada ficara em minha cabeça: a de uma moça cuja mãe adorava ficar na janela. O motivo que me fez refletir longamente sobre o caso era o fato de que a mãe era cega.
Enquanto pensava nas mulheres “ventaneras”, cheguei em casa para encontrar uma pequena criatura na minha própria janela. A minha gata, Leeloo. Pela primeira vez, notei o quanto aquela postura vigilante – sem ser nunca vigiada e observada – era um hábito seu, e somente seu. Meu gato, Luke, nunca passava mais que alguns segundos observando o mundo através daquele vidro do meu apartamento.
Aquela realização tornou-se uma obsessão nos dias que se seguiram. E, pouco a pouco, fui percebendo que tinha uma verdadeira e autêntica “mujer ventanera” em minha casa, que vivia em seu próprio mundo, e criava sua própria realidade, enquanto estava enclausurada em 75 metros quadrados de concreto.
Enquanto Luke nos implorava por mais comida e mais carinho, Leeloo observava o mundo do lado de fora da janela ou sonhava acordada, focando seus olhos de cor âmbar em um ponto qualquer da parede. Enquanto ele olhava sempre para seus donos, para dentro, o olhar dela estava sempre voltado para fora, para outro universo.
O orgulho dessa descoberta foi imenso, pois agora, depois de tantas dúvidas sobre minha própria natureza “ventanera”, posso dizer que tenho uma representante dessa exótica e rara espécie a poucos metros de mim. A minha gata “ventanera”.









Lições de uma “chica rara” sobre “chicas raras”:
Quando eu era criança, foi-me ensinado que protagonistas são lindas, têm corpos de Barbie, são doces como rapadura e casam-se com príncipes encantados. Aquelas moças que fogem de casa, não têm filhos, ou – deus-me-livre-e-guarde – não se casam, são infelizes para sempre. Obviamente, minha lógica foi mudando aos poucos, à medida que fui conhecendo o mundo, mas não foi até conhecer Carmen Martin Gaite que entendi o quão diferente uma mulher pode ser de uma princesa da Disney.
São elas as “chicas raras”, protagonistas que não terminam com um príncipe encantado. Em primeiro lugar, porque eles não existem. Em segundo lugar (e o mais importante), porque são mulheres que não precisam, não querem, não buscam um par romântico.
A maravilhosa “chica rara” que me apresentou à Gaite ensinou-me que as “chicas raras” não precisam ficar enclausuradas no espaço doméstico. Seu espaço também pode ser urbano, além da janela da casa, além da vida de esposa e de mãe. Essas protagonistas anti-heroínas podem xingar sem ser julgadas, podem ficar solteiras sem ser encalhadas, podem não ter filhos sem ser estéreis, podem criticar sem ser histéricas.
Qual a conclusão desses ensinamentos? Agora, quando eu crescer, não quero mais ser princesa. Quero ser uma “chica rara”.


domingo, 21 de setembro de 2014



O Curso de Literatura de Autoria Feminina no Instituto Estadual do Livro em Porto Alegre, de 10 a 12 de setembro foi um luxo só!
Amei e aproveitei cada minuto da convivência com alunos e alunas altamente preparados.
Gratíssima pela oportunidade, meus queridos!
E muito obrigada ao IEL!






Com Andrei Cunha, Isabelle Fontrin, Giulia Barão, Meire Brod, Neli Susin,
Rosa Ângela Flowers, Luiza Silva, Monique Revillion e Laura Nunes Vieira.


sexta-feira, 19 de setembro de 2014



"Me atrevo a decir, apoyándome no sólo en mi propia experiencia, sino en el análisis de muchos textos femeninos, que la vocación de escritura como deseo de liberación y expresión de desahogo, ha germinado muchas veces a través del marco de la ventana La ventana es el punto de enfoque pero también el punto de partida".


Carmen Martín Gaite.

"El recuadro liberador de una ventana para que la mujer pueda alzar de vez en cuando los ojos a ella y descansar de sus tareas o soñar con el mundo que se ve a lo lejos es una referencia constante tanto en pintura como en literatura".


Carmen Martín Gaite.



“Por el mundo adelante”, de Carmen Martín Gaite.

Me atrapa como un pulpo
el color ya sabido de las cosas,
me asfixian mis sonrisas,
no respiro en las de ellos.
Dormí noches y noches
con el balcón cerrado
y al recordar después
la imagen mentirosa,
multicolor del sueño,
siempre había a mi lado unos oídos
y unos ojos abiertos;
me gustaba amasar
mi falaz pesadumbre
ante el espejo aquel.

Abrid ya las ventanas.
Adentro las ventiscas
y el aire se renueve.
Quiero huir de los ámbitos
calientes y tapiados,
salir sin compañía
por el mundo adelante.

terça-feira, 2 de setembro de 2014





Carmen Martín Gaite em 1982 escreveu uma carta linda para sua mãe, um exercício de imaginação, onde ela, desde o East River, debruçada sobre a janela,  alcançava a mãe numa janela da memória e compreendia, finalmente, os anseios e desejos de fuga, solidão e imaginação daquela mulher. As janelas que nos fazem sonhar, duvidar, imaginar. Escolhemos, cada uma no grupo, uma janela e um interlocutor e escrevemos os textos a seguir, reiterando esta prática tão feminina da  escritura dos diários, das cartas, da intimidade.
A carta abaixo é para as mulheres ventaneras deste curso e deste blog, com quem, a cada sábado, compartilho um sonho e uma teimosia, os que irmanam as mulheres que querem escrever.


 Brasília, 29 de julho de 2014

Querida Carmen Martín Gaite:
Abro de par em par a minha janela e a nossa conexão é imediata. Você, debruçada talvez sobre o East River e eu, debruçada talvez nas águas do Paranoá. Tenho boas notícias, minha amiga, minha amiga de tantos anos. E estou escrevendo para contar da minha imensa alegria.
Elas vieram. Esperei-as por muitos anos, desejei por muito tempo que elas acudissem ao meu encontro – ao nosso encontro, na verdade- e elas vieram. Entraram alegres e curiosas pela porta da minha casa, instalaram-se ao redor da mesa e permanecem celebrando aos sábados, de uma comensalidade muito particular. Com chá de hibiscos (de um vermelho muito vivo) e um bolo que asso pela manhã antes delas chegarem, celebramos com alegria a comunhão do pensamento. Somos todas, de alguma maneira, grandes leitoras, algumas se aventuram formalmente pela escrita, outras não. Mas somos todas seduzidas pelo encantamento de uma história bem contada e pelo exercício da reflexão. Este exercício – o do prazer do pensamento - que não nos é ensinado às mulheres, mas que algumas teimamos em aprender.
E começamos debruçadas sobre as suas palavras e a sua janela, minha querida Gaite. Estas que falam da importância de uma janela para poder espichar o olho e fazer a alma evadir-se e poder pensar e poder sonhar. Que poder o desta mulher que debruçada na janela exercita a imaginação, a fuga e a dúvida. Estamos impregnadas da energia serena desta mulher ventanera. Exercitamos em todos os nossos encontros tudo aquilo que você ensinou às mulheres durante toda a sua vida: sobre o prazer de ler e escrever, sobre o prazer indizível de pensar, sobre a importância da interlocução, da expressão sincera e da escuta atenta. A interlocução, este olho no olho a que a literatura nos convoca numa forma de comunicação única, sincera, particular e infalível.
Esperei-as por tantos anos, minha querida Gaite, e elas vieram. Foi providencial ter deixado a janela aberta e ter sabido esperar. Como eu e como você, elas sentem uma alegria única com as palavras, com o pensamento e com a literatura. Ao redor da mesa degustamos a literatura de algumas outras mulheres que não conhecíamos, pudemos conhecer melhor sobre a literatura de autoria feminina e compreender, ali no texto, o que isto realmente quer dizer: escrever com o sangue, com o corpo, com os fluidos, reverenciar as genealogias, pactuar o "affidamento" entre nós e inscritas numa linhagem recém-inaugurada, poder voar para outros caminhos.
Porque é assim que as mulheres ventaneras ganham o mundo. O mundo da "ensoñación" que você nos fez vislumbrar e aceder. E assim pudemos voltar para nós mesmas, através da alegria que só a comunhão do pensamento dá. Pensamos, através destas escritoras, sobre nós mesmas, num exercício especular essencial, primordial, identitario que nos arrebata do isolamento e nos dá um lugar à mesa, ao lado de outras mulheres. Longe das nossas mães e dos nossos pais, longe dos nossos filhos, e longe da obsessão do par romântico como única forma de realização afetiva e existencial para as mulheres. Aqui somos mulheres que pensam, que celebram o prazer inenarrável que só as descobertas do pensamento e da reflexão nos propiciam.
Elas são adoráveis, Gaite, as meninas “ventaneras”, como as chamo, nossas “chicas raras”, e estou escrevendo para contar deste encontro feliz.
Sua sempre,

Lélia Almeida.

segunda-feira, 1 de setembro de 2014



Mujer ventanera, nunca llega a casadera.
Joven ventanera, mala mujer casadera.  
Joven ventanera, mala mujer casera.
Moza ventanera, mal mujer casadera.
Moza ventanera, o puta o pedorrera.


Carmen Martín Gaite em 1982 escreveu uma carta linda para sua mãe, um exercício de imaginação, onde ela, desde o East River, debruçada sobre a janela,  alcançava a mãe numa janela da memória e compreendia, finalmente, os anseios e desejos de fuga, solidão e imaginação daquela mulher. As janelas que nos fazem sonhar, duvidar, imaginar. Escolhemos, cada uma no grupo, uma janela e um interlocutor e escrevemos os textos a seguir, reiterando esta prática tão feminina da  escritura dos diários, das cartas, da intimidade.




"Carta para Astrid", por Rosângela Vieira Rocha:
Brasília, 31/07/2014.
Astrid querida,
Tenho sentido muito a sua falta e sempre sentirei. Mas sei que dificilmente sua ausência me pesará tanto quanto naquele horrível dezembro de 2012. Ainda mantenho muita viva a saudade que senti. A cada manhã, meu primeiro pensamento era para você. Eu sabia que você era a única pessoa com quem eu poderia dividir a dor daqueles dias, a única que poderia entender exatamente a profundidade daquele abismo, a escuridão que parecia querer me tragar, cada vez mais forte. Pensei em você no caminho para a clínica, que tantas vezes percorri sozinha, nos instantes em que minha esperança se tornava cada vez mais frágil e esgarçada e no pior de todos, quando o chefe da UTI me deu a notícia.
À saudade somava-se a pena. Via a sua imagem, o rosto provavelmente arredondado, a possível miopia e os lábios finos, se fosse parecida com a família de seu pai. A compaixão era tão forte que me fazia chorar por você, pela sua falta de sorte em não ter podido conhecer o seu pai, que naqueles dias agonizava em um leito hospitalar.
Que desperdício, minha querida. Aquele que seria – tenho certeza – um pai inesquecível partia sem conhecê-la, sem vê-la, sem abraça-la. Você nem imagina que homem generoso e nobre ele era. Dificilmente alguém teve um pai como aquele, que pertencia a uma espécie de homens raros, diferentes, únicos.
É impossível lhe explicar o caráter de seu pai. Tudo que eu disser parecerá exagero, você certamente vai pensar que é invenção de mãe ou de viúva que perdeu a noção da realidade e vê com lentes de aumento as qualidades de quem partiu. Mas, se o tivesse conhecido, concordaria comigo, certamente. Sabe esses homens que se tornam motivo de orgulho para os filhos? São quase inexistentes, mas seu pai era um deles. Tinha uma cultura muito sólida, um fino senso de humor, uma incomparável integridade. Ele era um lorde, com seus gestos refinados, seu notável bom gosto para se vestir e para apreciar obras de arte. Um lorde marxista, ainda assim um lorde. Nunca conheci um homem com senso de justiça tão arraigado.
Quis muito a sua companhia naqueles dias, minha filha querida. Chorar com você teria sido um grande consolo. A maioria daqueles que choraram comigo – e muitos o fizeram – choraram por mim, pela minha tristeza, e não por ele. Com você teria sido diferente, pois choraria pela perda do pai. Eu abraçava o travesseiro e pensava em você, para sempre longe, ideia abstrata que se concretiza sempre que a busco, e que depois se esfumaça, vira nuvem, entranhada nos arbustos e árvores frutíferas da quadra, nas flores e nas folhas que caem.
Agora as coisas se acalmaram um pouco, mas ainda sinto muita saudade do seu pai. E sei que vocês dois pertencem ao mesmo reino, conhecem os mistérios e estarão juntos para sempre. Ele saiu do seu corpo, deixou para trás o manto que o cobria. E você, espírito inconsútil, nem sequer chegou a vestir o seu, mas isso não impede a sua presença por toda parte, nas florestas e nas praças, nos cinemas e nos teatros, em todas as escolas, nos hospitais, nas cadeias, nas comemorações e nos sepultamentos.
Cada rosto feminino que vejo tem um pouco de você, da sua doçura, da sua inteligência e da sua coragem. Você, minha filha querida, de alguma maneira está presente em todas as mulheres. Sei que não é carne da minha carne, como se costuma dizer. Mas não tenho dúvida de que é espírito do meu espírito, que chora as minhas lágrimas e sorri o meu sorriso. Temos a mesma fome de alegria, você é minha adjuvante, minha parceira, com quem sempre poderei contar.




“A Saudade”, por Laís Rodrigues de Oliveira:

Ela sempre me surpreende. Volta quando menos espero. Ataca-me sem piedade. Deixa-me sem fôlego. Por favor, agora não. A loja está cheia. Os clientes estão aguardando. Vão achar que sou louca.
Uma das funcionárias preocupa-se com minha palidez repentina. Ofereço-lhe meu sorriso postiço, usado tantas vezes que nem eu sei mais a diferença entre o verdadeiro e este. Dirijo-me ao meu escritório para fugir dos olhares curiosos. Ao contrário do mundo, a vida não continuou para mim desde que ela se foi.
Abro a minúscula janela para respirar. Ela está do outro lado, em frente à porta vermelha da casa onde nossa família foi formada e destruída. Está descalça, com nada sobre a pele a não ser seu vestido favorito azul bebê rendado.
Atravessa a rua em meio ao trânsito caótico sem olhar para os lados, algo que deixaria mamãe desesperada. Não eu. Tudo o que quero agora é o seu toque. Seu sorriso. Sua voz. Assim que se aproxima da única abertura de minha parede que permite nosso contato, sinto meu coração acelerar.
Seu toque em minha bochecha traz mais do que calor à minha alma. Traz lembranças de uma época em que sua pele ainda era rosada. Seus cabelos, longos e cheios. Seu sorriso, esperançoso. Como éramos felizes em nossa ignorância!
O leve contato entre a mão de Luiza e meu rosto leva-me à minha outra vida. A um passado muito mais real para mim do que o meu presente.
Um tempo antes das infinitas esperas em corredores cinzentos com cheiro de formol e álcool, rodeada por rostos melancólicos desconhecidos. Um tempo em que receber ligações telefônicas não me dava medo. Um tempo em que planejar viagens em família não dependia da aprovação de um estranho em jaleco branco. Um tempo em que a minha irmã caçula não estava guardada em um jarro de cristal fosco em cima da lareira da sala.
Abro os olhos. Sua face não esconde sua decepção. Apesar de seus infinitos esforços para me animar, meus pensamentos sempre se voltam para os anos ruins, para a doença que a tirou de mim. Afinal de contas, Luiza sempre foi a otimista da família.
Lentamente, ela retorna até nossa antiga casa, atravessando a porta vermelha como se fosse feita de ar. Aos poucos, as vozes distantes vindas do café se tornam realidade, evocando a necessidade de minha presença no horário de pico.
Antes que me pergunte, garanto à doce funcionária que estou bem, que estava somente apertada para ir ao banheiro. Ela ri-se com a ingenuidade de quem ainda não é coberta por cicatrizes, de quem ainda não precisa mascarar sua tristeza com sorrisos postiços, de quem não sonha acordada para não enlouquecer.
Eu já fui assim um dia. Não mais. Hoje não passo de uma presa, sempre à espera do próximo ataque. E a minha predadora é paciente. Espreita, vigia, observa. Até que sua caça esteja novamente desarmada. Desprevenida. Vulnerável. Sem esperanças. Sem Luiza.
                                                               


“Quando o céu é verde escuro”, por Patrícia Baikal:

Depois de vinte e cinco anos sem ver minha mãe, hoje a encontrei do outro lado da janela de vitrais amarelos. Ela me olhava com olhos serenos e atentos, enquanto eu atravessava o portão de ferro coberto por primaveras que eram sempre podadas mesmo contra minha vontade. Eu pedia para não cortá-las porque eram a moldura da casa onde cresci e que agora está prestes a ser alugada por um desconhecido, um estranho cuja sorte sorriria toda vez que ele passasse por aquele jardim.
Desacelerei os passos quando ela inclinou levemente sua cabeça para a esquerda assim como a folhagem de uma árvore que se curva quando tocada por uma brisa, avisando-a da mudança de estação. Senti-me como o inverno que, de repente, perde o frio e a neve. Qual fora a última vez que a tinha visto fazendo aquilo? Então, regredi aos meus quatro anos. De alguma forma, ela percebeu meus pensamentos e confirmou minha lembrança sem falar uma única palavra, sem ao menos se mexer; continuou estática como uma pintura que eu decifrava.
Lembro-me muito bem. Apesar das pequenas pernas e braços miúdos, consegui arrastar uma cadeira da sala e posicioná-la debaixo da janela. Fiquei sobre a cadeira por alguns minutos, olhando para tudo que acontecia através daqueles vitrais amarelos e achava engraçado como as coisas mudavam de cor. As flores vermelhas do jardim se tornavam laranja e o azul do céu se convertia em verde escuro. Entusiasmada com tanta novidade, quis sair correndo contar o que via, mas a cadeira logo balançou e, de um golpe só, perdi o equilíbrio e fui ao chão.
Já falei para me chamar quando quiser subir na janela! Foi assim que ela falou comigo depois de ter inclinado sua cabeça por alguns segundos, exatamente como fez hoje pela manhã, ao ver-me atravessando o portão. Em ambas as vezes, seus olhos denunciaram um orgulho reprimido. Ela sabia que eu não me contentava com as paredes brancas ao meu redor.
Desde que ela se foi, enlaçada pela metástase que a deixou sem cor, nunca mais olhei por aqueles vitrais. Ela sabia disso e, agora, questionava-me como se quisesse entender a razão da minha falta. Está vendo o céu azul ou verde? Azul, eu respondi. É porque você não está vendo através da janela! Ao terminar de dizer isso, notei que ela desaparecia aos poucos, até não restar uma centelha de brilho.
Rapidamente entrei na casa e me dirigi à janela. Seria a primeira vez que eu olharia pelos vitrais amarelos, apoiada nas minhas próprias pernas, sem a ajuda de cadeiras e sem o medo de ir ao chão. E lá estava ele – o céu verde escuro. Há quanto tempo eu não via o céu tão verde! Verde como folhagens novas! Retirei os vitrais dos meus olhos e, ainda assim, continuei a vê-lo verde. Verde, verde! Que tolice a minha alugar aquela casa! A única casa que fica sob um céu verde escuro.




De sua janela à minha, por Edna Rezende.

Sou grata às paredes do meu quarto, rebocadas sem capricho e caiadas de branco. Elas circundam a janela grande, cuja esquadria de madeira está cheia de cupins, ávidos para criar asas e voar por aí. À tardinha, forro o batente com a almofada estreita, e deixo que meu olhar se perca sobre o rio, que limita o final da viela. É bom estar ali para colocar a vida em dia, fugir da existência paralela, restrita ao quotidiano, a dita realidade das coisas.
Nem sempre meu desejo se concretiza, por causa da moradora da frente. Ela também gosta de janela e eu fujo da presença dela que atrapalha, e muito, meu desejo de ausência.
Hoje eu lá estava, tecendo conjeturas sobre ilusões idas e vindas, quando um menino, trajando cáqui, deixou um pequeno envelope na janela da casa, justo a da vizinha. Ela devia estar atrás das persianas, de sobreaviso, porque o simples roçar do papel na madeira fê-la abrir a janela. Tomou o envelope nas mãos e de lá retirou um cartão, talvez um bilhete, que leu e releu. Observei seu olhar perdido em direção ao rio, à mesma paisagem que eu devorava para encher o vazio do mundo. Seu rosto, iluminado pelo olhar brilhante, exalava sensualidade e doçura. Doce de leite, manga sazonada, licor de jabuticaba, beijo na boca, nos seios e...
Então ela me viu e nossos olhos se encontraram num estranho reconhecimento. Surgiu um fio fantasioso, de uma janela a outra, no qual fazíamos acrobacias enigmáticas para nos fazer entender. ...por essa eu não esperava, você viu que o bilhete chegou, perdi na loteria, fofoca anda solta, o que vou fazer, me escuta, sou assim mesmo, não diga nada, se os outros souberem, ouça minha súplica, tenho muito a perder, gosto de amor proibido, de fazer coisa errada...
A aflição da vizinha tornava a ligação cada vez mais permeável, palavras soltas fugiam entre minhas defesas... acredite que o fio existe, sinta a mensagem, o código não é intrigante, fala de pacto de silêncio entre janelas carcomidas, de amor e de gozo, de sonhos atarefados numa busca eterna...
Então nossos olhos se desviaram, retornaram ao rio. Os meus queriam a paz das pequenas ondas, os dela, não sei. Talvez um mergulho arrebatado nas águas do desejo.








Querida Lélia!
Ter participado da Oficina Literatura de Autoria Feminina foi, para mim, uma incrível oportunidade de, conduzida pela tua arguta batuta de autora e maga, “hecharme um vistazo nada superficial hasta el adentro y el afuera de mi propria vida - gracias!
Marthinha, minha mãe, recentemente viúva, decidiu ir viver na praia com meu irmão.
Em uma fria tarde de domingo telefonei-lhe; não parecia estar desejosa de conversar; insisti... até que perguntei-lhe o que estava fazendo justamente naquele momento. Respondeu-me que estava à janela, olhando o mar, ouvindo as ondas, que durante a noite chovera e a vegetação resultara orvalhada e com mais intensidade nas cores.
Inibida e pouco à vontade fiquei! Encerramos a conversa e imaginei: afinal, como poderia estar ela descrevendo com tantas minúcias a paisagem? Ocorreu-me que a viuvez a afetara profundamente e que necessitaria do auxílio de uma psicóloga, terapeuta, sei lá; julguei que deveria encaminhar o assunto e ponderar com minha irmã sobre o quê fazer. O tema não prosperou e assim ficou!
Depois do primeiro encontro do Curso de Literatura de Autoria Feminina no IEL, sobressaltada, acordei durante a madrugada com a sensação de que acabara de ter tido “aquela” conversa ao telefone com minha mãe! Mas um diferencial me eletrizava e repetia para mim mesma: ela olha, ela vê através da janela ainda que não enxergue – é cega, mas vê além da visão.
Assim, Lélia Almeida, este é meu depoimento: obrigado por ajudar-me a descobrir que, indiferente do olhar, é possível ver e ser una mujer ventanera!

Abraço da Rosa Ângela.








Sobre sincronicidade e las ventanas, por Meire Brod:

Eu que já me encontrava num estado de deslumbramento por várias razões e, principalmente, por ter voltado a escrever, assumindo, assim, enfaticamente o vento que soprava em minha janela. Não o deixo mais escapar e, atenta, uso-o a meu favor, para tomar impulso enquanto meus cabelos se desconfiguram emoldurando em meu rosto ares de felicidade.
A velocidade dos fatos, no entanto, continua me assombrando. Escrever sempre foi tudo aquilo que eu sempre quis fazer, mas acabava sempre procrastinando. Como se eu ainda fosse aquela criança que gostava tanto de sua caixa de lápis de cor, que a usava com parcimônia para que ela não se gastasse e existisse mais um tanto. Suspendi por tempo demais o meu chamado como se o ato de escrever pudesse eliminar o gozo que antevia ao pensar nas palavras formadas em minha cabeça. Agora não mais. Agora, as concretizo.
Jung sempre falou sobre a sincronicidade. Ao escrever, desencadearam-se uma série de eventos que foram determinando coincidências significativas. Conhecer pessoas que precisava conhecer no momento exato dos acontecimentos tem sido um padrão subjacente, uma sincronia. Tal qual dizia Jung.
Então, me deparo com pessoas tão díspares que vão se somando a mim de uma forma contundente, que percebo que estava tudo ali. Somente eu não via. E no momento exato, conheci a Lélia e, com ela, as mulheres ventaneras da Carmen Martín Gaite. Gracias, Lélia, por abrir, de par em par, as minhas janelas.
Abraços da Meire.

“Estaba mucho más allá, en ese más allá ilocalizable adonde precisamente ponen proa ojos de todas las mujeres del mundo cuando miran por una ventana y la convierten en punto de embarque, en andén, en alfombra mágica desde donde se hacen invisibles para fugarse.”  (Carmen Martín Gaite)


Após a leitura de contos da Virginia Woolf e da Rosario Ferré percebemos a existência daquilo que algumas estudiosas chamaram de uma valorização estética do cotidiano e do doméstico, espaço central da existência feminina ao longo da história. Refletimos sobre a obsessão das mulheres com as listas, algumas que atestam sobre o inventário de uma existência inútil: lista de casamento, itens de um enxoval, lista de compras, rol de roupas e outras mais. No caminho oposto desta tradição resolvemos criar as nossas próprias listas, num exercício simples de reflexão sobre as nossas prioridades.




“Os meus Pontos de Mutação Favoritos”, por Laís Rodrigues de Oliveira:

O nascimento e criação em Salvador, a educação do Rio e o processo de emancipação em Brasília, confundindo a História do Brasil com a minha própria;
Disney, onde uma funcionária vestida de Cinderela fumando um cigarro aos prantos me fez perceber, com doze anos, que o mundo real definitivamente não é um conto de fadas;
Vancouver (Canadá): onde senti saudades de casa de verdade pela primeira vez;
Mont Saint Michel (Normandia-França): nossa primeira viagem em família. Talvez também tenha sido a última;
Hogwarts: ensinou-me que o fato do mundo real não ser um conto de fadas não quer dizer que não possamos criar os nossos próprios;
O mundo paralelo de Lélia: com chá vermelho, contos deliciosos e companhia fantástica, não precisamos de mais nada para sentir que estamos no paraíso;
Ilha da Magia: onde pretendo escrever o meu conto de fadas às avessas com meu marido.


"Para um casal dividir", por Patrícia Baikal:

O Amor
Tarefas domésticas
Segredos, mas nem todos
Contas para pagar
A cama
Amizades, mas nem todas
A educação dos filhos
A máquina de lavar
O fogão
As tristezas e felicidades
A vontade de ficar junto
A vontade de se separar.


“Vinte itens que me fazem feliz”, da Rosângela Vieira Rocha.

Receber um presente escolhido com sensibilidade;
Uma bolsa de couro nova;
Um convite para ver um filme bom;
Um convite para comer bacalhau;
Ganhar um bolo de coco;
Ganhar um livro ótimo, que ainda não li;
Ver o mar;
Comer docinhos de aniversário infantil;
Escutar “eu te amo”, se for com sinceridade;
Encontrar alfazema Garrão, em falta no mercado;
Um batom novo, cor de terra;
Ver meus ex-alunos brilharem;
Um vestido de renda renascença;
Encontrar sapatos que não me machuquem;
Ver pela primeira vez um livro que eu tenha escrito;
Ver meus irmãos alegres;
Lembrar a gargalhada da mamãe;
Pensar na sorte que tive, ao escolher meu marido;
Ver quadros dos impressionistas;
Rever Roma, especialmente a Fontana di Trevi.


“Escola Normal Nossa Senhora Auxiliadora: Enxoval para as alunas internas”,
por Edna Rezende.

Primeiro semestre de 1953:

2 cobertores
6 lençóis de 2,5 x 1,5m
4 fronhas abertas de um lado só
1 travesseiro de 0,65 x 0,45m
4 toalhas de rosto
2 toalhas de banho
6 guardanapos
4 camisolas de dormir, sem decote, com mangas compridas
2 camisolas de riscado ou fazenda forte sem mangas para banho
6 combinações com ombreiras (não com alças)
12 calças sendo 4 compridas e largas pra dormir
12 pares de meias compridas
24 lenços
1 pegnoir de fazenda tapada até os pés, sem decote, com mangas largas
2 sacos para roupa servida
1 saco para calçado
1 par de sapatos preto de verniz ou pelica para domingo com pulseirinha para abotoar
2 pares de sapatos pretos, fortes, para uso diário, salto baixo e sem enfeite.
1 par de chinelas
1 talher, colherinha e copo de metal
1 caneca de prata
Pentes, escovas para dentes e calçados, dentifrício, graxa, saboneteira, tesourinha, fivela escura para cabelo
Objetos de uso pessoal: agulhas, alfinetes, etc
1 bauzinho de folha de 25 cm de comprimento.
1 manteau azul-marinho (outra cor não serve), bem simples, sem enfeite de outra cor e do comprimento do vestido.
1 véu branco de filó de algodão com rendinha em toda a volta e um preto da mesma qualidade.
2 vestidos brancos e 3 vestidos azuis marinhos. Para maior uniformidade deverão ser feitos no colégio.
Tudo deverá ser marcado com o número que lhe for dado.
Observar a sobriedade do enxoval: sapatos fortes, sem enfeite, fazenda tapada.






“Viagens impossíveis de esquecer”, por Ana Liési Thurler.

1.      Encantamento em minha infância eram as viagens de trem. “Maria Fumaça” ou “Minuano”...  Em minha cidade confluíam trilhos em todas as direções. Cruzávamos o Rio Grande do Sul ou saíamos do coração do estado e chegávamos a Porto Alegre. Meus pais, meu único irmão e eu. Mais tarde, fruí o sabor de autonomia que me dava tomar o trem e vencer sozinha, aqueles 300 e poucos quilômetros.
2.      Em 2013, minhas filhas e eu fomos a Aracaju, conhecer o pequeno estado de Sergipe. Um mundo cultural habitado por bonequeiras, artesanatos de criatividade sem fim. Duas rendeiras me contaram, orgulhosas, terem feito casacos para a Presidenta Dilma.  Mas há mais a nos encantar. É lá que o Velho Chico encontra o Atlântico, se impondo poderoso.  O Chico chega manso. Não se mistura. Suspeito que, assustado, mergulha nas profundezas do Oceano.
3.        Foi ali, em 1988, no Peru, onde, pela primeira e única vez, tive o imenso Pacífico diante de mim. Ele se ocultava sob neblinas cerradas, sendo mistério puro. Éramos várias pessoas, mas somente um menino e eu, extasiados. Ele levara um vidro para colocar “água do Pacífico” e apresentar a seus amigos em São Paulo.
4.        Aconteceu-me de, algumas vezes, encontrar e amar o México com suas atemporais marcas aztecas. No Ángel, fiz vigílias incluindo-me entre homens e mulheres militantes. Sabíamos ser da mesma frátria. Fui acolhida. Visitei algumas vezes a impressionante casa de Frida, os afrescos de Diego, o Zócalo, a UNAM.
5.        Cheguei à mãe África, ao Marrocos, com a mediação de amigas queridas. Tenho medo de atravessar o Atlântico, mas dizia não temer sobrevoar o Mediterrâneo. Chegamos à Casablanca. Fomos a Fez, Rabat, Marrakech. Misturei-me aos locais nas Medinas, com riqueza cultural indescritível. Reverenciei Mesquitas de arquiteturas delicadas e arrojadas, materializando uma civilização que nossa islamofobia impedia de valorizar suficientemente. Eu tinha uma fantasia: atravessar o Estreito de Gibraltar. Uma amiga embarcou em meu delírio. Acompanhou-me a Tânger. Tivemos que esperar dias até o tempo permitir que o barco fizesse a travessia. Chovia muito e precisávamos usar o secador para poder vestir nossas roupas que se encharcavam. Finalmente, a travessia. Não foi tão tocante avistar o continente europeu logo ali, quanto, no retorno, sentir a África crescendo diante de nós.
6.        Um dia alcancei a Rússia. Moscou: o Kremlin, a Praça Vermelha, a Igreja de São Basílio, as estações do metrô com suas cúpulas altíssimas e pinturas evocando a Revolução de 1917. São Petersburgo e o vagão no qual Lenine chegou à cidade, à Estação Finlândia, voltando do exílio na Suíça, em 16 de abril. Como Rosa Luxemburgo, pedia que a Rússia não entrasse na 1ª Guerra Mundial. A avenida Nevsky e os personagens da fantástica literatura russa, circulando por ali, comoveram-me imensamente. O mar da Finlândia, o Hermitage com suas escadarias e a sombra de Einsenstein, com seu Encouraçado Potenkin. Mas o Hermitage só apresentava os Romanov. Uma colega e eu, inconformadas, pressionamos a guia para mostrar-nos o outro Museu. Então, chegamos ao “Museu da Revolução”, semi-abandonado. Mas lá estava a mesa onde Lenine trabalhava, a sacada de onde discursava, impressoras pioneiras onde foram rodados os primeiros manifestos comunistas nos inícios do século XX.   
7.        Ao encontrar a China, em 1995, no IV Congresso das Nações Unidas sobre a Mulher, soube com todos os sentidos ser, nosso alfabeto, meu chão e identidade. Admirar ideogramas foi experiência estética.  Jamais conheci, entretanto, sentimento tão agudo de alteridade, de ser estrangeira e estar excluída.  Imensa curiosidade. Ao mesmo tempo, enorme medo de extraviar-me do grupo, perder de vista o guia. Não saberia nem chegar ao hotel, menos ainda ao aeroporto. Permanecemos em Beijing e visitamos Xian - dos guerreiros de terracota -, Xangai – imensa e com um centro histórico valioso - e Guillin. Por essa cidade, ao sul, passa o rio Li. Fiz um passeio por suas águas entre montanhas altivas e elegantes. O vento veio, levou meu chapéu branco que, imagino, flutua ainda pelo rio Li. Um pouco de mim, deixei lá, como uma tênue ponte entre minha pequenez e aqueles mistérios que não consegui decifrar.
8.        Vivi um tempo em Paris. Quando o bombardeio explodiu sobre o Iraque em março de 2003, acompanhei em um entardecer, os moradores da cidade tomarem as avenidas, pedindo paz. Vi um bloco de mulheres palestinas e israelenses, as “Mulheres de Negro”, com grandes velas acesas, juntas clamando por paz. Frequentei bibliotecas, cinemas, muitas exposições de arte, seminários. O mais emocionante deles, sem dúvida, de Jacques Derrida. Havia somente um limite: o último metrô. E havia também uma exceção: a noite do equinócio do verão, com a Festa da Música, em 21 de junho. Então, metrôs transitam 24 horas, a música ganha onipresença e eu, plena liberdade de ir e vir, quando meu coração desejasse.
9.        Ao encontro da Alemanha fui um ano antes da queda do muro. Podia-se tomar o metrô, levando marcos orientais e voltar antes da meia-noite. Entendi poder passar um bom dia no lado oriental, com esses marcos permitidos: almoçar, comprar algum livro, ir ao Berliner Ensemble. Maior engano. Com aquela importância se faria uma só coisa; ou se comeria ou se compraria um livro ou se iria ao teatro. Reclamei com um guarda com 1,85m de altura e nem sabia ter tanto alemão, para discutir com um segurança germânico, no clima de repressão. A estação de metrô parou para ver o que acontecia e me ouvir. Nos retornos a Berlim Oriental, minha amiga e eu, já levávamos o lanche.  Quis muito ir a Trier, a cidade onde nasceu e viveu Marx até seus 18 anos. Chegando lá, tomamos um ônibus e sentei bem à frente, feliz e atenta a tudo. Ao descer, minha colega que ficara bem atrás comentou espantada: como você conversou com sua vizinha com fluência! Expliquei: a felicidade talvez nos torne mais inteligentes e sensíveis. Em Berlim, fiz foto com Marx e Engels. Orgulhei-me do triângulo amoroso que resultou.

10.    Encerrando esta lista de viagens memoráveis, coloco Guatemala. O país adotou como símbolo o pássaro Quetzal e me seduziu com sua resistência diante de uma guerra de décadas por interferência externa e com sua capacidade de preservar a alegria que estava nos rostos indígenas, no amor pelas cores e músicas, nas lutas por Direitos Humanos.