domingo, 30 de novembro de 2014


Ontem nos trabalhos do Curso de Literatura de Autoria Feminina em Brasília apresentamos dos livros "Uma morte muito suave" de Simone de Beauvoir de "O xale" de Cynthia Ozick. O tema foi pesado: a morte da mãe e a morte da filha. Os contos que seguem, de Laís Rodrigues de Oliveira foram inspirados nas histórias contadas na aula, sobre a inútil bondade das mulheres e sobre a história de um xale.




Cecília era boa, por Laís Rodrigues de Oliveira.

Tão boa, que nem de formiga no açucareiro ela reclamava. A mais velha de sete mulheres, fora a primeira a casar-se. Seu marido gringo a levou para conhecer sua família irlandesa, que vivia em Londres, e por lá ficaram. Até que o homem descobriu que a esposa era infértil. Com o desejo irresistível de gerar filhos com seu sangue, o descendente de vikings introduziu seu código genético no útero de sua secretária, Ginger, uma mulher que havia acabado de deixar para trás a puberdade.
Cecília voltou à sua cidade natal, declarando estar feliz que alguém satisfaria a vontade mais profunda de seu antigo esposo. Suas irmãs surpreenderam-se com sua calma e tranquilidade diante de situação tão repugnante. A caçula da família, sorridente, apenas disse: “Claro que ela está feliz. Afinal de contas, Cecília é boa”.
À época, outras três irmãs de Cecília já haviam se casado: Cora, Clara e Cláudia. Clara casara-se com o homem mais rico da cidade, e viviam em uma grande mansão com mais quartos do que pessoas. “Enquanto não os enchemos de filhos”, ela sussurrou ao marido, “Cecília deveria ficar conosco. Ela é boa”. Após uma noite em claro discutindo o assunto por meio de gemidos, o milionário convenceu-se de que Cecília poderia ficar hospedada em sua casa.
E foi assim que a boa Cecília viveu. Entre as casas de suas irmãs alternadamente, ficando com aquela que mais precisava dela, criando todos os seus sobrinhos. Por vezes cuidava do filho de Cora, quando a asma atacava. Outras, estudava com os meninos de Cláudia, quando eram reprovados em alguma matéria. Quando Clara queria passear pela Europa ou Clarice queria se aventurar pelos Andes, era a boa Cecília quem cuidava dos pequenos. Foi Cecília quem ficou ao lado de sua caçula, Cida, durante os nove meses de gravidez com complicações. Seu marido era o responsável por uma grande obra na Amazônia, e raramente podia visitá-la. “Não se preocupe em me deixar, meu amor. Estou bem com Cecília. Ela é boa”, assegurava Cida.
Quando seus sobrinhos estavam criados, foi a hora de apoiá-los com seus respectivos filhos. E, por agradecimento a todos aqueles anos da companhia da boa tia, eles batizaram todas as suas filhas mulheres com Cecília no nome: Ana Cecília, Maria Cecília, Elis Cecília, Mia Cecília. Os amigos e conhecidos perguntavam por que havia tantas Cecílias em uma mesma família. E eles sempre respondiam, em uníssono: porque Cecília era boa.




O xale, por Laís Rodrigues de Oliveira:

Foi amor à primeira vista. Quando viu pela primeira vez meu xale, um retângulo de linho com listras coloridas que lembravam um arco-íris, nunca mais o largou. O xale tornou-se seu amigo, companheiro de brincadeiras, protetor para noites de frio, defensor contra o monstro do armário, o alimento mais doce. Tudo o que ela queria, o Xalinho, como minha pequena Magda o chamava, providenciava.
Somente quando ela adormecia eu tinha coragem de separar os dois. Tinha de lavá-lo quase toda noite, pois Magda o carregava até ao jardim da casa, correndo às gargalhadas enquanto nossa cadela, Stella, tentava alcançá-los. Minha menina tinha tanta energia que por vezes me esquecia de sua subnutrição.
Há alguns meses, um bando de animais começou a invadir nossa pequena fazenda. Toda semana, geralmente aos domingos, algo adentrava nosso terreno. Quando meu marido e alguns vizinhos acordavam e iam em busca dos bichos clandestinos, eles já haviam fugido. Não tínhamos ideia do que eram, pois ninguém os havia visto, mas sabíamos que eram muitos porque deixava vários buracos na cerca.
Começou a haver fofocas de que seriam chupa-cabras, alienígenas, uma nova espécie de animal, jornalistas e cientistas chegaram a vir da cidade grande para tentar desvendar o mistério. Enquanto isso, nossa comida era roubada, deixando-nos dependentes da boa vontade dos familiares e amigos. E nada descobriam.
Temia as visitas, não pelas criaturas em si, mas pela fome que geravam em Magda e o estado raivoso em que ficava meu marido. Toda vez que ele voltava das cercas infestadas de fendas, infligia seu ódio nas maçãs de meu rosto, em minhas costelas, no meu estômago. Tentava me manter quieta para não acordar Magda, mas por vezes chorava ao vê-la parada na nossa porta, com aqueles olhinhos assustados, agarrada ao Xalinho, sem saber o que fazer.
Meu marido finalmente teve a brilhante ideia de eletrificar as cercas em volta do nosso terreno. Certo de que iria livrar-se das bestas, gastou o pouco dinheiro que tínhamos poupado para tal fim. Não gostava da ideia, achava que seria um perigo para as nossas galinhas, cabras e cachorros. Porém, nada disse. Mais do que tudo, queria que as surras cessassem.
Acho que foi o zumbido da eletricidade correndo pelos fios de arame que atraiu Magda. Eu havia me distraído por apenas alguns momentos ao telefone, explicando a minha receita de bolo de cenoura com cobertura de chocolate a uma comadre. Ela já estava a poucos metros da cerca quando a vi pela janela da cozinha.
Desesperada, agoniada, angustiada, mexi minhas pernas como nunca o fizera antes, disparando em sua direção. Stella estava atrás dela, mordendo a ponta do Xalinho, tentando sem sucesso arrancá-lo da pequena mão direita de Magda. Seu dedo indicador esquerdo, curioso, estava se aproximando lentamente do ruído na cerca. E tudo aconteceu em menos de um instante.
Pude ver a eletricidade maldita apoderar-se de seu corpo, correr pelo arco-íris do xale e tentar possuir Stella. A cadela acabara de desistir de puxar do tecido, e começou a latir assim que notou algo de errado com Magda. Culpei a desgraçada da cachorra por não ter mordido com força suficiente, poderia ter puxado Magda para trás e eu teria conseguido alcançá-la.
Pensei em minha vida a partir daquele momento em milésimos de segundos. Magda seria levada ao hospital, mas já estaria morta ao chegar lá. Eu ficaria inconsolável, e minha depressão impeliria meu marido a comprar cigarros e não mais retornar. Sozinha, vulnerável, sem minha Magda, voltaria a beber. Seria novamente a alcoólatra sem rumo que fora antes da luz chegar à minha vida. Seria achada desmaiada com uma ponta de cigarro acesa em minha mão, tão tomada pelos comprimidos para minhas intermináveis enxaquecas que nem teria forças para abrir os olhos.
Não quero esse futuro. Magda era meu futuro. Determinada, agacho-me e agarro seu pequeno corpo. Uso meu indicador para repetir seus movimentos. Mamãe está chegando, Magda.
  

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