sexta-feira, 7 de novembro de 2014





Um dos exercícios propostos ao grupo de Brasília foi a leitura de um conto da Isabel Allende que se chama “Dos palavras”, dos “Contos de Eva Luna”. Belisa Crepusculario, uma vendedora de palavras, profere  duas palavras capazes de acabar com os brios de um coronel autoritário e violento e fazê-lo cair de amores por ela. Não ficamos sabendo que palavras são estas. Patrícia Baikal e Laís Rodrigues de Oliveira escreveram suas histórias imaginando o poder destas palavras secretas:







“Duas palavras”, por Patrícia Baikal.

A primeira vez que Gilberto entrou no quarto de Adélia, surpreendeu-se com as paredes. Havia centenas de palavras rabiscadas nelas. “Os homens sempre deixam duas palavras para mim, antes de deixarem meu quarto”, ela explicou. Era um costume que se dava em todos os quartos daquela casa e também das redondezas. Ninguém sabia como todos haviam se adaptado àquela prática. Ele nada disse e, alvoroçado, despiu-se rapidamente, embriagado com o cheiro de canela que se esparramava pelo ambiente.
Sobre a cama, unidos num só, ele imaginava as palavras que escreveria. Ao suspirar o último gemido no ouvido dela, após tantos outros, ele fez um pedido: “Quero escrever as duas palavras nos seus seios”. Ela concordou, e logo abriu o armário para procurar a caneta. Gilberto marcou os seios da moça, desenhando cada letra com o cuidado que aquela pele merecia. Adélia sentia a tinta fria, quase dolorida, penetrando em seus poros. “Amanhã, volto para te ver”, despediu-se.
Enquanto o tempo resistia à força do desejo de Adélia, ela olhava para cada palavra rabiscada nas paredes, e se sentiu sozinha, como se nunca houvesse sido mulher de alguém, e como se ninguém tivesse sido dela até então. No espelho, Adélia viu refletida uma palavra em cada seio e, no banho, protegeu-as da água devastadora. Sentia as letras tatuadas na sua pele, ardendo com uma força que ela não imaginava que pudessem exercer.
Gilberto voltou uma semana depois e, dessa vez, foi ela quem pediu a ele que a deixasse escrever em seu corpo. “Quero escrever em suas coxas”, ela disse. Ele discordou por quase um segundo, mas logo cedeu. Ela escreveu a primeira palavra na coxa esquerda dele e, depois, na direita. Ela imprimia com força a tinta na pele, que era para ela não se esvair com o tempo, com qualquer troca de roupa ou beijos de outra moça.
No dia seguinte, Adélia não quis receber as visitas de sempre. Não desceu para o salão lotado de gente, não cantou nem bebeu. Comeu algumas fatias de pão ao meio dia e, às cinco horas da tarde, deitou-se na cama para aguardar Gilberto. Às oito da noite, Gilberto entrou no quarto sem pedir permissão, beijou-a como não houvera feito ainda e, antes mesmo de se deitar, empossou-se da caneta sobre um criado-mudo e escreveu nos lábios rosados de Adélia – as mesmas duas palavras que havia escrito em seus seios. Ela retirou a caneta dos dedos de Gilberto e fez o mesmo nos lábios dele. Naquela noite, eles adormeceram juntos, e sonharam que suas peles estavam manchadas como aquelas paredes.  
Na manhã seguinte, Adélia acordou com o cheiro de café que vinha do salão, misturado à canela que inebriava os lençóis. Gilberto já não estava ao lado dela, e havia deixado o quarto, em busca de outras andanças, forasteiro que era. Por alguns instantes, ela permaneceu na cama, imaginando se ele havia se banhado, se a tinta dos lábios dele havia se escorrido com a água quente do chuveiro. As duas palavras que Adélia escrevera estariam agora no fundo do ralo, perdidas entre cabelos molhados e esquecidos.
Ela se levantou, desceu as escadas e pediu um balde com água e sabão. Sozinha, lavou as paredes de seu quarto com a espuma, até que não restasse uma só palavra nelas. Depois, lembrou-se do que escrevera nas coxas do homem que nunca mais veria: Meu homem. Ela se olhou novamente no espelho e leu, em voz alta, as duas palavras que seu corpo mostrava, antes que fossem apagadas pela espuma que tinha nas mãos: Minha mulher. Daquele dia em diante, era Adélia quem escrevia nas paredes do seu quarto, preenchendo o vazio do branco com inúmeras palavras. Suas palavras e de mais ninguém.

Comentários:

As paredes do quarto de Adélia representam a modelagem que os homens fazem a respeito da personagem feminina, que se habituou a ser descrita e analisada pelas palavras dos escritores. Historicamente, a literatura publicada e disseminada tem sido a de autoria masculina. A sociedade se acostumou a ler os escritores, a vê-los nas estantes das livrarias, nas paredes dos quartos. A metáfora que envolve as duas palavras escritas nos seios de Adélia representa a escrita masculina, utilizada como símbolo viril, ao longo do tempo. Metáfora esta também utilizada por Karen Blixen, em seu conto “Pagina em Blanco”.
A literatura de autoria feminina surge, portanto, num segundo momento, impregnada com a força necessária para que as escritoras sejam ouvidas, mas com a leveza da sensibilidade. O prazer da escrita que a mulher encontra aparece tardiamente e de forma sofrida, “ardendo com uma força que ela não imaginava”, como descrito no conto.
Quando Adélia descobre o prazer das palavras, ela anseia por também escrevê-las, e acaba por fazê-lo no corpo de Gilberto. Esta “ansiedade de autoria”, descrita por Susan Gubar e Sandra Gilbert como a ansiedade por ver a sua autoria reconhecida, aumenta a tal ponto que duas palavras somente não são necessárias para saciá-la. Então, Adélia passa a escrever inúmeras palavras, ao invés de apenas deixar que os homens façam por ela.
A protagonista percebe o poder das palavras e a influência que elas causaram na sua carência de uma relação mais profunda e duradoura, uma vontade “de ser de alguém”. Essa vontade, no entanto, fica quase apagada com a espuma que ela usou para lavar as antigas paredes. Ao final, a carência de ser possuída é substituída pelo prazer de possuir palavras somente dela, de ser autora, afinal.







“Duas palavras”, por Laís Rodrigues de Oliveira:

As primeiras noites foram sofridas. Vê-la ali, nua, perfeita, sentir seu perfume através das minúsculas frestas das paredes envidraçadas sem poder tocá-la era excruciante. Sentir o movimento infinito, reação natural àquela visão divina intocável, sem a possibilidade de alívio, transformava o prazer inicial em dor da opressão. E ela, mascarada, linda, puta, percebendo o meu desespero, abria ainda mais suas pernas, deixando sua umidade visível, mesmo estando eu a muitos metros de distância.
Sem contar que seu lado era muito melhor do que o meu. Separados por uma fina camada de vidro, que continuava infinitamente para ambos os lados e em direção aos céus, estávamos em mundos distintos. No meu, a secura e falta de vida me lembravam de uma viagem que havia feito com o exército, onde treinei durante seis meses junto ao meu regimento. Lá, o céu azul era desprezado, e rezávamos por dias de chuva.
No lado dela tudo era diferente. Aquela puta sacerdotisa deitava-se confortavelmente no tapete verde escuro, macio, úmido, aconchegante. As árvores ofereciam sombra, e as flores selvagens transformavam o conjunto em uma obra de arte aromatizada. Podia ouvir os passarinhos cantando, o barulho de um riacho correndo por entre paredes terrosas, as folhas balançando com uma brisa infinita.
Eu ali, com a farda colada no corpo suado, a garganta seca, as narinas ardidas, com a merda das botas apertando os meus pés calosos, o bigode coçando na minha cara, somente com o nada para me reconfortar. E ela lá, aquela puta perfeita, sem o peso das roupas, molhada do banho que certamente acabara de tomar, cheirando as hortênsias, os lírios, as margaridas, brincando com os passarinhos azuis, esfregando aquele corpo de deusa na minha cara, me mostrando tudo o que eu não poderia possuir.
Essa situação desgraçada repetiu-se durante seis longas noites. No sétimo dia, temia adormecer. Bebi café durante todas as refeições, peguei alguns livros emprestados de um dos meus soldados, fiquei no bar do Alberto até a hora de fechar. Achei que poderia controlar o sono, mas ele se apoderou de mim com a mesma rapidez das balas que deixam a minha espingarda.
Assim, antes que pudesse fugir, lá estava eu, fedorento, cansado, faminto. E lá estava ela, aquela puta mascarada, desgraçada, bruxa, dançando livremente entre as flores coloridas e as árvores protetoras. Porém, havia algo diferente desta vez. À minha esquerda, podia vê-lo à distância: um ponto vermelho na parede de vidro. Com as poucas forças que me restavam após seis noites inteiras de sofrimento, corri até a única fonte de cor do meu lado.
Era uma porta.
Não consigo descrever todas as sensações que tive ao abri-la. Os cheiros, o frescor, a suavização. Era como se o ar daquele lugar estivesse me convidando, acariciando o meu rosto. De repente, surgiu dentro de mim uma necessidade desesperada por sentir aquelas carícias em cada centímetro de pele do meu corpo. Quando livrei-me daqueles trapos fedorentos, entendi o conforto em sua nudez, a euforia em seu sorriso, a excitação em seu rosto. Não sabia se era ela que tornava este mundo tão mágico ou se era este mundo que a tornava tão celestial.
Precisava encontrá-la, possuí-la, implorá-la para deixar-me descarregar meu acúmulo dentro dela, alimentar-me com seu corpo paradisíaco, engolir-me com sua boca celestial. Não havia mais fome por comida, sede por água, necessidade por uma sombra. Todo desejo de meu ser estava voltado para a minha mascarada angelical. Obviamente, como sou eu o invasor, foi ela quem me encontrou.
Não conseguia ler sua expressão ao encará-la. Ela mudara. Seus olhos não estavam mais contentes. Estavam negros, vibrantes, encarando-me com apetite. Não precisei suplicar. Ela cavalgou, cavalgou, cavalgou sobre mim. Continuou montando mesmo após meu clímax. Continuou, com ainda mais potência, após seu próprio ápice. Já havia me aliviado três vezes quando ela finalmente desmontou e caiu desmaiada sobre o meu corpo. Minha deusa.
Acordei.
Ela havia invertido tudo. O mundo real era o dela, o nosso mundo, o mundo físico tornou-se uma passagem cansativa e necessária para chegar até ela. Meus soldados temiam que seu capitão estivesse doente, pois andava dormindo mais tempo do que ficava acordado. O que eles não entendiam, nunca conseguiriam compreender, é que o tempo acordado no mundo físico era tempo desperdiçado adormecido no meu mundo real, no nosso oásis.
Na décima terceira noite, estava ansioso para voltar para casa, dormir aqui e acordar lá, do outro lado, do meu lado de verdade agora. Não podia, pois antes deveria comparecer à festa de um amigo. Entediado desde o momento em que cheguei, distraído com meus devaneios pensando em meu mundo encantado, apenas percebi que ela se aproximara ao sentir seus lábios mornos encostando-se à minha orelha.
Mal sabia eu que aquela feiticeira, a minha deusa, havia invadido este mundo sem graça. Ela estava ali do meu lado, e eu estava tão angustiado para voltar à minha cama, para voltar para ela, que nem a havia notado. Felizmente, ela decidira confessar sua identidade, mudar minha realidade de volta para cá, desinverter tudo de novo. E, como a deusa que ela era, o fez com apenas duas palavras.
“Porta vermelha”. 












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