segunda-feira, 1 de dezembro de 2014




Nos trabalhos de sábado passado do Curso de Literatura de Autoria Feminina em Brasília apresentamos dos livros "Uma morte muito suave" de Simone de Beauvoir de "O xale" de Cynthia Ozick. O tema foi pesado: a morte da mãe e a morte da filha. O conto que segue, de Edna Vieira Rocha de Rezende foi inspirado nas histórias contadas na aula, sobre as ambivalentes relações entre as mulheres e os não menos ambíguos sentimentos em relação à maternidade. Edna Vieira Rocha de Rezende impecável, como sempre!

“Primavera tardia”, por Edna Vieira Rocha de Rezende.

Desde a aposentadoria, Cleide se dedicava mais ao jardim. Cultivava plantas de antigamente. Flores, de preferência. Sob o caramanchão salpicado de roxo, onde a promessa de novos maracujás se manifestava com excesso de perfume, viam-se os cochos de madeira maciça. Deles se erguiam violetas tímidas, cujo perfume suave se destacava longe dali, e que Amarílis, diante do sorriso de permissão, colhia para suas rasas floreiras de cristal. Perto do muro de pedras, havia o canteiro das espécies bulbosas, como açucenas, lírios, junquilhos e amarílis,  solicitadas por muita gente, com despudor, no Dia dos Mortos. 
Cleide gostava de percorrer as vielas do jardim, na esperança de que as azaleias lhe ensinassem a se esquivar do tédio. Em algum momento, seu ânimo se desprendera. Professora de literatura, ela agora recordava Milton: Quão cedo o tempo, esse sutil ladrão da juventude, roubou em suas asas... Levara o quê? Principalmente a força interior, o ânimo para refutar qualquer desdém. “Não quero preferência na fila, não quero vagas especiais no estacionamento, não quero ser da terceira nem da melhor idade. Quero ser Cleide, sem rótulo e sem aposto.” Quando o sentimento de perda abalava a convicção de que em sua vida conquistara algo, confidenciava às plantas suas rebeldias. Às vezes, se dirigia aos passarinhos, que bicavam sementes nas avencas rendilhadas. Ali havia paz.
A sala de espera do hospital, apesar do silêncio, produz ansiedade. O coração de Cleide parece se distender, projetando hérnias entre as costelas. De vez em quando, a zonzeira quase a leva ao chão. Os músculos do pescoço se elevam e comprimem a garganta num movimento para impedir o choro. Sentindo-se culpada, rememora.
Naquele dia, organizava os armários da casa. Manuseava peças, de gosto duvidoso e de utilidade improvável, quando Amarílis chegou. Moravam na mesma rua e, naquela tarde, a moça sorria de modo misterioso. - Novidades! - disse Amarílis, com voz conspiratória. Instigada por olhos indagadores, ela falou baixinho: - Estou grávida de três meses! Quis ter certeza absoluta, para depois contar...
Até hoje Cleide não consegue entender como preparara o café, partira o bolo de chocolate, dispusera os pratos na mesa e servira Amarílis. Sua cabeça rodava. As mãos frias, insensíveis às asas das xícaras, tremiam com a notícia. Envergonhada, desejara que o abraço de parabéns fosse muito mais do que a frouxa aproximação, na despedida. Não conseguira ser mais efusiva.
Depois da notícia, voltou ao jardim, corroída pela inveja. E a minha primavera tardia não gerou brotos nem botões. A gravidez de Amarílis e o viço das plantas evidenciavam a aridez de sua velhice. “Açucena, tenha pena, meu tempo passou depressa, a rosa se desfolhou, eu não me vejo no espelho, me sucedeu Amarílis, ela irá frutificar e eu já não tenho pomar, minhas frutas sazonadas se foram sem muito alarde. Para mim é muito tarde!”
Cleide já não lembrava se conseguira concluir a arrumação dos armários.  Sabe que um amontoado de emoções se apoderara dela e perdurara por todos aqueles meses. Detestara Amarílis e a sua novidade. Começara a pensar, com frequência e ironia, que a pele da gestante perde o brilho. Podia antever o cabelo quebradiço, a enorme barriga, uma corcova frontal a esticar as roupas, como capas malcheirosas de toureiros. Na coluna vertebral arqueada, nas pernas inchadas, nas varizes incipientes residia a motivação das fantasias maldosas de Cleide.
Na borda da cisterna, ela tentara obter alívio. Debalde. Os objetos não tinham mais nitidez. As flores de maracujá se avolumavam como fetos humanos. A presença exaustiva do roxo, no caramanchão, sugeria a cor da placenta. Tudo lhe parecia estranho e penoso.
Numa determinada manhã, Cleide não conseguira se levantar da cama. Pediu ao marido que preparasse o café e tencionava dominar, até que ele se fosse, a náusea que a atacara, inadvertidamente. Mas quando o cheiro do café alcançou o segundo andar, Cleide correu para o banheiro. “Enjoos matinais, eu?” E, em cada dia, um alimento diferente tomava a si a tarefa de atormentar. Não obstante, os assados provocavam um frenesi insuspeitado, excitavam-lhe a gula, e ela os devorava depressa. “Tudo por causa de Amarílis. É ela a grávida, não eu...”
Diariamente Amarílis ia à casa de Cleide e falava de algo novo, ligado à sua gravidez. Contava que os seios estavam pesados e que as bermudas já não lhe serviam. Dizia que não tinha certeza, ainda, sobre o sexo da criança, mas que havia uma indicação, não comprovada, de que esperava uma menina. Sorridente, pedia à Cleide para não comprar nada para o enxoval do bebê, porque não podia imaginar um menino vestindo cor-de-rosa.
A atitude de Cleide variava bastante. Em certas ocasiões, ligava-se a Amarílis, de forma quase simbiótica. Queria todos os detalhes, se dormira bem, quando se alimentara pela última vez, não é bom que uma grávida fique de estômago vazio. E lhe telefonava, em horários impróprios, pedindo notícias. Períodos de carinho, de hostilidade e de omissão se alternavam de modo aleatório.
De outras vezes, consciente ou não, Cleide insinuava dramas, forjava mal entendidos.  Com um sorriso brando e fingido, discorria sobre as circunstâncias de seus partos e sobre o sofrimento de seu filho caçula, que quase morrera com a síndrome de angústia respiratória. Repetia sempre que os bebês se mexem demais, fazem da mãe um pêndulo ambulante, os bichinhos insaciáveis.
Certa manhã, Amarílis pediu à Cleide para afrouxar um vestido, porque ela não tinha máquina, nem sabia costurar. Assentindo, Cleide não perdeu tempo e descreveu as duas cesarianas que havia feito. Reafirmou que os hospitais são perigosos depósitos de micróbios e que ela mesma havia sido contaminada. Relatou, se repetindo, a drenagem do foco infeccioso que havia se instalado sobre uma das incisões.
Num paradoxo, Cleide podia se esconder em implacável mutismo. Não por pirraça, mas por medo. Ouvia as palavras de Amarílis, mas não apreendia seu significado. Sons avulsos eram tudo o que lhe chegava. E, se ousasse responder, não tinha certeza de que fora compreendida, ou, ainda pior, não sabia se os fonemas reunidos expressavam suas ideias. Tinha medo de chorar.  Via, nos olhos de Amarílis, a estranheza que divisava em si mesma.
Após as visitas, Cleide divagava. Amarílis era muito jovem, irresponsável, jamais conseguiria criar um filho, de modo digno. O mundo de hoje exige boa educação. O bebê terá cabeça suja e assaduras. As fraldas ficarão pululando sobre a lixeira. Que competência tinha Amarílis para criar um bebê? Logo ela, que deixava roupas espalhadas no chão e copos enodoados em volta da TV? O marido não fará muita coisa, também. Gosta de cerveja e de churrasco, e Amarílis, com seu belo sorriso, sabe atenuar tristezas e iras.
Nas tardes, contemplando as avencas em volta do poço, Cleide tentava abafar, com o canto dos passarinhos, o som de certo murmúrio que a perseguia. E ainda havia percalços de outra ordem. O vizinho, com quem ela trocava sementes e mudas, viera lhe perguntar se os bulbos de açucena já estavam em condição de plantio. De súbito, sentiu que suas faces ficavam vermelhas e teve certeza de que ele percebera o movimento de sua barriga, toda ela no lado esquerdo do corpo. Tomada por vergonha intensa, ela pediu licença, havia uma panela no fogo. Virou-se rapidamente, adentrou a casa e se dirigiu, às pressas, para o banheiro. Com álcool, friccionou sua barriga, freneticamente. “É apenas uma câimbra!” Por via das dúvidas, tomou um relaxante muscular.
Numa noite, quando a lua cheia surgia entre as árvores, Amarílis convidou Cleide para irem até o poço. Bem humorada, ela separou alguns biscoitos com geleia e lá ficaram, até que Amarílis se deu conta das horas e partiu. Nessa noite, Cleide sonhou. No caramanchão, as flores de maracujá cediam lugar a pequenos frutos, que se espalhavam sobre as folhas recortadas. Subitamente, uma ventania inexplicável carregou os frutos em redemoinhos e tornou murchas as flores restantes. Acordou. Angustiada, correu para o jardim. Teve medo do seu sonho e do que ele poderia significar. Absorta com as cenas oníricas, não lutou contra o murmúrio: do recôndito do seu ventre, que tremelicava suavemente, emergiu a voz fina e insegura: “mamãe”.
Cleide, atônita, esmurrou a própria barriga. “Isso jamais deveria acontecer, é loucura, ilusão, fantasia delirante. O pior é que as ilusões derivam dos desejos. O que pretendo com isso? Privar Amarílis de ser mãe? Estaria eu com inveja? E por que não? Amarílis é jovem e bela, vai ter um filho, iniciar uma vida. Perdi a coroa. O que tenho a não ser uma vida desbotada, sem arroubos, sem beleza? Um jardim. Avencas e lírios poderiam atender aos meus anseios de felicidade? Para Amarílis, o filho é o marco inicial. Eu já estou na linha de chegada. E nem me venham falar em recomeço. Isso não existe. A cada dia a vida se reinicia... Pois sim! Isso é jargão de livro de autoajuda. Cada dia representa um passo em direção ao ponto final. E a barriga pontuda de Amarílis é um indicativo do meu fim, o marco que delimita o espaço do qual serei banida”. 
Cleide permaneceu no caramanchão por toda a madrugada. Bem cedo, seu marido a encontrou. Gritava, alvoroçado, que Amarílis havia entrado em trabalho de parto e já estava no hospital. Com esforço, Cleide, de olhos baços e corpo arqueado, levantou-se, na difícil tentativa de parecer normal, como todo mundo deve ser quando surge uma vida, quando o infindável ciclo se repete.
E agora está ali, na sala de espera, ciente de que Amarílis teve uma complicação e está sendo operada. Agoniada, sente que a vida lhe pregou uma peça. Não desejara que tudo acabasse assim, que Amarílis sofresse. O conflito que vivencia faz dela uma tira esgarçada, incapaz de conter os próprios sentimentos, entre os quais o remorso. “Teria Amarílis percebido tudo, estaria magoada?” Sabe que não demonstrara equilíbrio, não atendera aos anseios da jovem, aos seus largos sorrisos, às novidades sobre a gravidez, que trouxera com tanta empolgação. Procura por justificativas. As ideias que se sucedem recaem sempre sobre a mesma certeza. “Não creio que ela me perdoe. Como poderia? Como explicar a ela que, ao desejar sua juventude, estava fugindo do meu próprio futuro? Que, ao perder a confiança na vida, me restou o cinismo? O temor à solidão me fez vacilar, embaciou meus olhos. Amarílis se distanciava de mim que sou sua mãe, por causa de um bebê, também ele sutil ladrão da juventude, meu sucessor como objeto de amor. Inveja e ciúme tramaram a nódoa virulenta”.
A um chamado, é conduzida ao quarto de Amarílis. No berço forrado de rosa, a menina dorme. A floração renovada torna a imortalidade de Cleide menos precária.  Olha para a sonolenta Amarílis. A moça tem o semblante acetinado como pétalas de flor. Cleide pensa nas Amarílis, estrelas emersas da terra, e se rende ao exemplar mais perene e brilhante, sua filha Amarílis, símbolo atemporal da primavera.  

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